LIÇÕES DO INCONSCIENTE: REFLEXÕES PSICANALÍTICAS CONTEMPORÂNEAS: PSICOSE NA CONTEMPORANEIDADE: UM TRATADO ANALÍTICO PARTE 2

Vitor Rodrigues Correia

11/24/202410 min read

Considerações acerca de alguns fenômenos da psicose e pressupostos básicos e gerais

Zimerman (1999) faz uma separação entre as peculiaridades características da psicose: as psicoses propriamente ditas, o estado psicótico e a condição psicótica. Na primeira, ele formula a proposição do ego deteriorado nas suas funções, em graus variáveis, e possui um grau sério de prejuízo de relação com a realidade, as diferentes formas de esquizofrenias crônicas, por exemplo. Nos Estados Psicóticos, pontua duas condições: relativiza uma adaptação ao mundo real, "exterior", e exemplifica os pacientes borderline, paranoides ou narcisistas; algumas formas de perversões, psicopatias e neuroses graves. E a condição psicótica, por fim, seria uma condição da mente, uma "regressão ao nível de psicose clínica", o que há uma presença dos "núcleos psicóticos", e que Bion denomina de "a parte psicótica da personalidade" seria uma condição psíquica potencialmente psicótica que, aparentemente, estão bem "adaptadas". Inter-relacionados com a estrutura neurótica rigidamente organizada, cujas naturezas são obsessivas ou somatizantes.

Ou seja, essas estruturas se interligam e estão intimamente ligadas umas às outras. Na prerrogativa de enunciarmos que todos temos, estruturalmente e em algum grau, algumas características de cada uma das estruturas clínicas. Sendo psicóticos, temos traços neuróticos e perversos, e assim é nos entrelaçamentos das estruturas em si só, e intrinsecamente internalizados. E daqui surge um questionamento: o que caracterizaria a diferença entre a psicose e a neurose é, de fato, uma perda total da realidade? A posteriori não, pois, ao analisarmos alguns casos, podemos perceber uma lembrança, uma consciência e uma realidade sólida dos eventos ocorridos durante o fenômeno propriamente dito. O que não configura uma não psicose. Na ciência que o papel da consciência tem no lembrar e o papel da memória nessa consciência e na lembrança. Lembrança essa que, ao nosso ver, configura um retorno ao útero, um conforto amniótico do recém-nascido para a compreensão do fato ocorrido, o que facilitaria (dado a lembrança), um entendimento melhor do fenômeno.

Vale aqui acentuarmos o papel da castração nesse processo ainda nos dias de hoje. Bem como da segunda tópica de Freud (id, ego e superego), e também dessa relação com a primeira tópica ao exposto acima acerca do papel da consciência, da memória e do papel do lembrar. Um determinismo se faz nesse processo, ou seja, retomando o que Freud chama de determinismo psíquico, e que nós aqui denominamos, na transfiguração desse conceito para nossas discussões, chamamos, carinhosamente, determinismo teórico, em que tudo está interligado, e nada é isolado, por isso é preciso observar o que há por trás de cada fala de cada analisando, além de termos uma visão holística da situação. Por isso, é preciso, nessas situações e nessa clínica verificar se o analisando é analisável. Isso, muitas das vezes, requer um manejo de trabalharmos em conjunto com a psiquiatria. E tê-la como parceira e não como uma rival e isso se faz presente com outras formas de psicoterapia também.

Nessa estrutura clínica o que muitas vezes acontece é, também, de o analisando distorcer aquilo que aconteceu com ele(a), nas fantasias alucinógenas, principalmente e mais acentuadamente logo após o fenômeno, no momento da consulta para um suposto diagnóstico. Assim, a alucinação, como é sabido, passa pelos cinco sentidos: audição, visão, olfato, paladar e tato, é assim que percebemos o mundo e é por aqui que perpassam as alucinações.

Muito do que captamos do mundo, e que enxergamos, podem prover de dois pontos e dois questionamentos: o mundo existe por si só? Ou é por mim que ele existe? Se o mundo existisse por si só e não pudéssemos captá-lo, de nada adiantaria a existência do mesmo, ou seja, para ele ser percebido, faz-se necessário compreendê-lo, enxerga-lo e percebê-lo, e o contrário também se daria, seria preciso existir algum lugar substituto, uma realidade qualquer. Logo, ambos acontecem. O mundo existe, de fato, e de certa forma única e concretamente, por assim dizer, mas o percebemos de uma forma peculiar, única e singular, bem como a partir das experiências individuais de cada um, por isso é complexo esse enigma da mente, “o que de fato eu vi ou ouvi”?

Por outro lado, ademais, existe o delírio que tem que ver com o pensamento e a percepção, e a desorganização do mesmo. E temos as falas e o discurso dos analisandos como norteadores das nossas análises. Cabe ressaltar que muitas coisas são antigas nesse campo, e há questões que não mudaram, inclusive esse pontuado acerca das alucinações e delírios, além dos pensamentos desorganizados e outros pensares basilares para compreensão das situações, desses eventos e fenômenos.

Exemplifiquemos, então, alguns pontos marcantes para entendermos o que se passa na cabeça e imaginação de um psicótico: alguns psicóticos, por vezes, vão anunciar que ouviu e/ou viu determinado acontecimento na realidade que outras pessoas não viram e que realmente não aconteceram objetivamente, mas subjetivamente com o paciente (“ativo”/"ativante" na clínica). Ou que estão lhe perseguindo, mas isso fica em segundo plano nas suas falas ou o mesmo ouviu vozes e viu determinado fenômeno e isso fica à parte nos seus discursos.

Por vezes, ele mente ou omite não porque ele quer, mas por um mecanismo de defesa do ego para suportar a realidade; o que acaba causando uma confusão no diagnóstico e distorções nas análises. A psicose marca uma perda da realidade subjetiva do indivíduo, e não total, como já foi pontuado. A esquizofrenia e a paranoia estão interligadas, com alucinações, delírios e manias. Alucinações por meio dos sentidos e a paranoia ou delírios com uma confusão dos pensamentos. Essas distorções acontecem por uma supressão, uma suspensão dos eventos ocorridos para lidar com os primeiros impactos, e que posteriormente falará a verdade, o que ocorreu, de fato, e que agora está bem elaborado.

Além dos delírios de grandeza e místicos característicos desses quadros que também existem: sou Deus ou, o poder está em minhas mãos, sempre colocando um alto discurso de si enquanto um posicionamento no mundo! Etc.

De outro modo, retomando os fenômenos anteriores pontuados, eles não se restringem apenas ao que foi relatado, mas a inúmeros casos de distorções dos sentidos. Como esses eventos são psíquicos, internos, e psicológicos, não há como mensurarmos ou detectá-los, o que é viável é criarmos um "diagnóstico" a partir do que o analisando relatou, por isso, faz-se necessário um cuidado ao propor tais “conclusões”, muitas vezes tiradas de forma brusca e rápida, surge o que está em alta hoje um tipo de prática clínica, o que chamamos de "psicanálise selvagem", mais um ponto de destaque aqui é o diagnóstico na psicanálise. Não fazemos diagnóstico escrito, mas é importante fazê-lo para tomarmos um rumo, servir de roteiro e de caminho, por isso, pontuamos tal feito aqui.

Portanto, o que vai caracterizar na personalidade de alguém com esse quadro futuramente será uma figura narcisista, não um transtorno em si, mas um alto grau de senso de grandeza, de achar que estão conspirando contra ele, que pessoas só falam dele e assim por diante. Caso esses aspectos interfiram na personalidade e na relação com os outros em demasia, poderá sim, causar e caracterizar um transtorno de personalidade narcísica. Ele se põe como sendo o centro do universo e das pessoas, isso é fruto do caráter delirante e paranoico, o que acaba interferindo nas relações sociais que ele terá.

Aquilo que fugiu dele no episódio do surto, que ele dividiu e cindiu, e que fragmentou, retorna a ele como forma de centralização do seu eu ou ego, bem como, uma união se dá através da organização mental que retorna ao eu, e o consciente, aquilo que não foi cindido, faz parte da pulsão de vida e acarretará na potência, mesmo que mínima. E não somente a libido (apesar de ser estudioso desse conceito e concordar com o mesmo), mas o que acontece nesse episódio, também, está vinculado à atenção, percepção, fala, vontade, memória, lembrança, consciência, organização, formação de conceitos, emoção, linguagem e pensamento. O que Vigotski denomina funções mentais superiores.

[2]No DSM 5, "esses transtornos são definidos por anormalidades em um ou mais dos cinco domínios a seguir: delírios, alucinações, pensamento (discurso) desorganizado, comportamento motor grosseiramente desorganizado ou anormal (incluindo catatonia) e sintomas negativos" ao quadro, no item Espectro da Esquizofrenia e Outros Transtornos Psicóticos. Sei que no meio psicanalítico o DSM é muito criticado, mas isso não impedirá em citar a fonte, pois é a mero propósito de conceituar “classicamente” e trazer a visão da psicanálise logo em seguida em contrapartida.

É claro que para fecharmos um diagnóstico, faz-se necessário uma análise sólida e bem fundamentada. O que na psicanálise existe todo um arcabouço para isso, toda uma investigação minuciosa, e o que a "Ciência do Inconsciente" (termo cunhado por nós) faz, não é trabalhar a doença, mas o sujeito, como ele lida com o sofrimento, com a angústia, com as dores e com a realidade.

Sendo assim, na contemporaneidade enxergamos as estruturas clínicas como formas que a psique tem de lidar com a realidade, com a solidão, com o querer a atenção dos nossos pais, com a angústia da globalização, da tecnologia, da urbanização, da chegada de outro filho, da paixão não correspondida, do barulho, da incontingência do daqui uma hora, do amanhã, do ideal de eu e do eu ideal, dentre outros fatores que incomodam a existência humana.

Dentro dessa categoria, podemos pontuar alguns níveis de caracterologia: a psicose natural, a psicose propriamente dita e a psicose crônica ou orgânica. Mas antes de aprofundarmos nestes conceitos basilares para entendermos a clínica psicótica, é cabível pontuarmos que nem tudo é psicose, mesmo o mais profundo grau de psicose, às vezes pode ser apenas um desconforto do ego.

Dito isso, cabe aprofundarmos nesses conceitos: a psicose natural seria aquela que acontece no nosso cotidiano normal: ouvir chamar seu nome, enxergar um vulto "x", e em menor grau atingir outras formas dos sentidos; tato, paladar e olfato. Não precisamos nos preocupar com esse fenômeno, num primeiro momento.

A psicose propriamente dita, analisando objetivamente, seria aquela que é manifestada através de eventos corriqueiros e configurada em conjunto com outras formas de neuroses e até de perversões. Compondo uma mistura, mas sobressaindo a psicose em um grau maior e mais acentuado, por isso, esse nível intermediário, e intermediário aqui não quer dizer mediano, nem médio. De certo, com um auxílio psiquiátrico, o paciente terá condições de se sujeitar à psicoterapia de orientação psicanalítica, não entrando no mérito de que a psicanálise é ou não uma psicoterapia, porque acredito não ser o foco aqui e essa discussão é meio boba e chata, e bem intrigante no campo em questão. Esse tipo de psicose aparece conforme alguns fenômenos ambientais subjugados à influência, mas também com uma etiologia biológica mínima. Acentuando a psicose. Além de termos que levar em consideração os surtos psicóticos eventuais. Bem como, os usos dos psicotrópicos geradores de surtos esporádicos.

Já a psicose crônica ou orgânica é aquela que precisa também de um acompanhamento psiquiátrico mais aprofundado, é quando um quadro é advindo de características não físicas, mas de traços mais profundos, hereditários e mais complexos, até biológicos, neurológicos e físicos. Aqui, o analisando precisa ser assistido com um método mais corriqueiro, freudianamente falando, ou seja, de quatro a cinco dias na semana, tanto pelo psicanalista, quanto pelo psiquiatra, talvez em menor grau neste último. Mas isso envolve vários fatores, dentre eles o financeiro e a desigualdade social, por "quem pode" ou "não pode" ter esse tipo de assistência, que aqui, também, não é o nosso propósito discutirmos. Mais uma vez, os argumentos da união entre os profissionais das diversas áreas da saúde mental são válidos justamente pelos diversos graus deste quadro.

O que não podem ser excluídos, nem deixados de lados atendimentos públicos a esses analistas de si mesmos, o paciente.

Essas influências ambientais citadas são compostas das relações entre os pares, ou melhor, entre a família, os pais, principalmente, a relação de identificação no complexo de édipo, como os pais lidaram com esse processo e como os filhos absorveram isso. Bem como, com a barreira de recalque e as leis. Dentro do espectro biológico e neuroquímico, temos as influências da mãe, da gestação, do ambiente e circunstâncias nas quais a mãe viveu durante a gestação, no momento do parto, os genes neurológicos da criança etc.

No entanto, não fiquemos presos a somente aspectos físicos e orgânicos do sujeito, mas aos fenômenos psicológicos e inconscientes, nesse caso, a psicose, propriamente dita, às suas causas, de analisarmos os fenômenos como um todo, na sua amplitude maior: de forma metafísica, no sentido literal, além dos aspectos físicos. Não se assustem com os neologismos, mas pensem numa ênfase aos enunciados e seus contextos, em um olhar além do que os seus olhos possam ver, e além do que seus ouvidos possam escutar: o amor, o olhar a alma humana como apenas uma outra alma, mas, é claro, sem interferir nas técnicas que o pai da psicanálise propôs, a neutralidade e a imparcialidade, na observância da transferência e contratransferência, toda a relação e laço entre o analista e analisando, além do manejo clínico próprio da ciência do inconsciente.

Não obstante, haver como pressuposto que os aspectos orgânicos, os medicamentos irão dar um suporte com mais ênfase, isso na psicose orgânica, e o que for propriamente a níveis do campo psicanalítico trabalhar em cooperação com outros profissionais da área da saúde mental, com estudos de casos dentre outras formas de cooperação técnica e metodológica. No saber que existem analisandos (ou chamem como quiser) que a psicologia não trata seus sintomas, mas a psicanálise consegue chegar no cerne daquilo que dói e ressignificar aquele ponto específico, o que vice-versa acontece também, por vezes, da psicanálise não tratar, mas a psicologia, sim, coisas que não podemos negar, talvez para alguns, infelizmente.

O que acontece, muitas das vezes, é criticarmos outros campos dos saberes, preconcebermos e pré-conceituar aquilo que chamam de “concorrências”. Pelo contrário, são apenas campos diferentes do pensamento e conhecimento humanos. Mas enfim, somente para pontuarmos algumas coisas aleatórias que retornam sempre no eixo da discussão proposta deste capítulo.